Ayrton Senna em foco

A CENA DE SENNA
por Rafael Ligeiro
São Paulo (BR), 15 Mar 2006

Se tivesse de imortalizar Ayrton Senna na tela de um quadro escolheria dois momentos determinantes na carreira desse ídolo brasileiro.

Primeiro: a ultrapassagem sobre Alain Prost no famigerado e chuvoso Grande Prêmio de Mônaco de 1984. Embora não tenha sido validada - graças a uma "patriotada" que todos conhecemos muito bem, a manobra sobre o baixinho de Lorette foi a credencial da competência de Ayrton na Fórmula 1. Segundo: nosso tricampeão dentro de seu Williams no grid de largada de Ímola, em 1994. Mais que a partida para aquela que seria a última corrida de sua vida, a imagem de um Senna visivelmente sério e pensativo chama a atenção até hoje. Especialmente minha atenção.

Logicamente, não entrarei no campo do misticismo. Respeito àqueles que acreditam que o paulistano "previu o acidente", mas não acredito nessa hipótese. De qualquer modo, é surpreendente verificar algo único na carreira de Senna. Tudo bem que Ayrton nunca fora um desses de sorriso fácil. Porém, das diversas facetas do brasileiro nos anos de F-1 - até mesmo o lado "brigão", jamais havia emanado naquele rosto uma fisionomia tão reservada, aparentemente dominada por tristeza e preocupação, às câmeras de televisão de todos cantos do mundo. Especialmente quando lembramos do tricampeão como um astuto conhecedor de seu talento e condição de ídolo. Não pensava duas vezes em criticar um rival ou comentar suas chances com equipamento pouco competitivo, mas isso jamais era transmitido ao torcedor em maior intensidade que a solidez de sua segurança e competência. Ao tipo: "Está difícil, mas não se preocupe. Deixa comigo!".

Claro que os acidentes de Rubinho e Ratzenberger contribuíram para esse "estado de espírito", aumentando o stress comunal de um fim-de-semana de corrida e representando um grande baque a Senna. Seria assim a qualquer um, especialmente ao brasileiro que, com as saídas de Nélson Piquet, Nigel Mansell e Alain Prost da F-1 nos anos anteriores, havia assumido o posto de piloto mais importante da categoria. Era basicamente um "capitão" do time de pilotos do certame. Mas obviamente a questão não para nisso. O paulistano tinha uma preocupação extra: o desequilibro no chassi Williams.

Desde seus primeiros testes com o carro da equipe inglesa, Ayrton alegava que o modelo FW16 era instável. "Lutei muito para sentar naquele carro, para estar ao lado de Frank Williams, mas estou sentido que vai dar trabalho", declarou certa vez. "Ou eu não me adaptei ao carro, ou o carro não foi com minha cara". E a causa para a falta de aderência em um monoposto que até o ano anterior era digno do apelido "carro de outro planeta" - tamanha superioridade técnica dentro das pistas sobre as rivais - estava no regulamento. Algo apontado pelo próprio brasileiro em comunicado da Williams após o acidente de Barrichello, em treinos livres da sexta-feira.

Além de banir alguns componentes eletrônicos dos carros que facilitavam a pilotagem, como o controle de tração e a suspensão ativa - duas das cartas na manga do time de Grove nos dois anos anteriores, em 1994, a Federação Internacional de Automobilismo (FIA) reduziu a largura dos pneus e dos aerofólios.

Como um piloto de grande experiência e sensibilidade, Senna sabia das dificuldades que teria em Ímola, circuito marcado por trechos de baixa e, especialmente, alta velocidade, como a própria Tamburello; onde, somado a um asfalto abrasivo, o desgaste dos pneus poderia ser um problema durante a prova. Prova disso é que, em pleno aquele trágico 1° de maio, em artigo ao jornal alemão Welt am Sonntag, Senna afirmava: "O carro de Schumacher é muito bom, o que me dá dores de cabeça, pois revela os pontos fracos do meu, que é muito arisco neste tipo de asfalto, mas existe algo que está dificultando o trabalho das suspensões". Resultado provável das alterações aerodinâmicas, afinal é sabido que em um carro arisco o desgaste de pneus - e conseqüentemente a exigência das suspensões, que não possuíam mais os truques eletrônicos de outra época - é maior que a de um monoposto equilibrado.

Temperatura dos pneus. Outra preocupação de Senna foi revelada durante o GP samarinense. Ao gesticular para que o piloto de Pace Car fosse mais veloz, o brasileiro evidenciou a inquietação com a temperatura dos pneus de seu Williams. O carro de apoio, que entrou logo após o acidente na largada envolvendo Jyrki Järvilehto e Pedro Lamy, permaneceu durante cinco voltas. Evidentemente, com um ritmo limitado ao Pace Car, a temperatura ideal dos pneus (cerca de 90 °C) dificilmente é atingida. Em um modelo de F-1 publicamente criticado por sua instabilidade, a relargada com pneus ainda frios poderia representar um perigo. Aliás, em documentário exibido em setembro de 2003, o National Geographic atribuiu o acidente a subaquecimento nos pneus da Williams e perda repentina de downforce. Particularmente, continuo com a velha tese de ruptura na barra de direção. Porém, incidente também "motivado" pelos fatores citados pelo veículo de TV paga.

De fato, aquele momento antes de largada em Ímola não é da beleza da ultrapassagem de Senna sobre Prost. Mas representa o início da transformação de um campeão do Brasil em mito mundial. De um piloto que era literalmente a extensão do carro e sabia das adversidades técnicas a superar em seu equipamento.